A pior edição desta prova, não pelos atletas ou resultados, mas pela perda de Gino Mäder.
Um atleta, um jovem e, mais que isso, um rapaz com namorada, família e sonhos, muitos sonhos. Obviamente que não o conhecíamos pessoalmente, mas, como ávidos adeptos, é fácil interessarmo-nos por estas figuras menos convencionais e mais humanas.
Recordamo-nos de Michael Goolaerts e Bjorg Lambrecht, os casos mais recentes em corrida, mas também de Michele Scarponi e Davide Rebellin, em treinos, entre outros. É angustiante, mesmo que não os conheçamos pessoalmente. São os nossos ídolos e crescemos com os riscos que tomam e achamos ‘normal’. Vemos a descida de Ayuso e pensamos ‘que talento, é um momento tão bom como um contra-ataque perfeito que dá em golo ou o nosso prato favorito cozinhado na perfeição, é para isto que vemos ciclismo’ e, com o mesmo grau de intensidade, o entusiasmo passa a preocupação, que vai, gradualmente, aumentando, perante os relatos assustadores de que se vai tendo conhecimento.
‘São só rumores’, pensamos nós. O mediatismo está em cativar o público, seja por bons ou maus motivos. Mas, depois, surge uma fotografia, do Magnus em claro estado de choque, sem ser percetível o estado do Mäder, mas é visível o desfibrilhador utilizado para o ressuscitar, assim como a preocupação na cara do staff, um tweet de Calmejane a pedir que o Mäder esteja bem, e tudo começa a tomar proporções anormais. Um medo de perder alguém que não conhecemos torna-se real.
Até que, perante a falta de notícias durante várias horas, o pior cenário confirma-se às 11h do dia seguinte. Gino perdeu a luta contra as lesões sofridas e nós, o mundo do ciclismo, perdia uma das pessoas mais acarinhadas.
Com uma pequena pesquisa era possível encontrar entrevistas de, e sobre, Mäder, cujas palavras de ordem eram: humildade, humanidade e carinho. Daí que tenham existido manifestações de luto tão intensas, não por ser um ciclista brilhante, mas por ser um jovem distinto. A situação em si é suficientemente dolorosa para afetar qualquer adepto da modalidade, mas é pior quando é uma figura acarinhada por todos.
Veja-se o exemplo que meteu o suíço nas bocas do mundo do ciclismo: Paris-Nice 2021, etapa 7, Gino andou escapado cerca de 110km, só para ser ultrapassado nos 50m finais por um foguete chamado Primoz Roglic. Esta situação mereceu críticas ao esloveno (completamente descabidas, mas isso é outro ponto), e, o derrotado do dia, consciente disso, tomou a liberdade de dizer o seguinte: “Quando, a 20 metros do fim, um avião passa por ti, num primeiro momento ficas absolutamente arrasado e desiludido, mas no fim, posso dizer que foi uma experiência muito boa (estar na frente). (…) Uma das suas qualidades, enquanto campeão, é querer vencer sempre (…) aspiro a ter a mesma energia para tentar ganhar, tiro-lhe o chapéu.”, outra das suas declarações, bem-humoradas, foi: “Ele passou tão depressa que tive medo de apanhar uma constipação.”
Além do desportivismo, era conhecido pelas suas preocupações sociais, nomeadamente o ambiente e os animais. No primeiro caso, na Vuelta 2021 (ironicamente, vencida por Roglic), Mäder prometeu doar um franco suíço por cada ciclista que terminasse atrás de si, em todas as etapas, e um valor semelhante por cada um que ficasse atrás na CG final. Provou-se o seu melhor desempenho, alcançando o 5º posto e vencendo a camisola da juventude, o que perfez um valor de 4,529€. No segundo caso, a situação mais conhecida foi ter resgatado um cão, nas ruas de Bilbao, dando-lhe o nome de Pello, pelo seu colega de equipa.
Magnus Sheffield sofreu uma queda no mesmo local e assistiu a toda a ação que vitimou Mäder, entrando em choque, mas, pelo que se sabe, está bem (fisicamente) e em casa, depois de ter passado uns dias no hospital. Contudo, para qualquer pessoa é traumatizante passar por isto, ainda mais para um miúdo tão jovem (21), esperemos que consiga ultrapassar e regressar ao pelotão. Quinn Simmons não caiu, mas seguia atrás do suíço e parou imediatamente, fazendo sinal aos carros e aos serviços médicos, que acudiram de forma célere, mas já não havia nada a fazer.
Descansa em paz, Gino.
1ª Etapa
Quanto à corrida, a primeira etapa foi conquistada por um soberbo Stefan Kung, que se superiorizou a Remco e Van Aert. Ayuso e Skjelmose foram os mais fortes (além do campeão do mundo de estrada, claro), entre os candidatos à CG, e figuraram no top10 da etapa.
2ª Etapa
No segundo dia, com a disputa da vitória a ser ao sprint, vimos Girmay mais inteligente que o resto do pelotão e a sprintar ‘à Sagan’, movimentando-se bem entre as rodas dos adversários e a utilizar Van Aert (abriu o sprint de demasiado longe) como seu lançador de luxo e impôs de forma convincente a toda a concorrência.
3ª Etapa
Na terceira etapa, o primeiro grande teste aos candidatos à CG, com especial foco em Remco e Ayuso, por regressarem de covid e lesão, respetivamente, podiam estar diminuídos fisicamente e, por isso, podíamos ver uma surpresa.
A 6,3km do fim, o espanhol parecia em dificuldades, enquanto o belga aparentava ter regressado ao seu nível habitual, com um ataque forte, mas que era acompanhado por Felix Gall e Mattias Skjelmose. Ayuso, a ritmo, ia fechando espaços, recuperando posições, mas sempre longe da frente da corrida.
A 2,5km do fim, Gall tentou a sua sorte, atacando, sem resposta do belga. Skjelmose aguardou e, percebendo as debilidades do campeão do mundo, daí a 400m arrancou para junto do austríaco. 300m depois, Remco era absorvido pelo grupo perseguidor.
No fim, vitória para Skjelmose, com Gall a ser segundo e, surpreendentemente, Ayuso a ultrapassar as dificuldades iniciais para terminar em 3º, e Remco 4º.
4ª Etapa
No quarto dia, mais um trajeto complicado e duro, com pouca história, dado que Gall, com muito estilo e coragem, atacou com um colega de equipa a 20km do fim, provocando uma aceleração no pelotão que descarregou Ayuso.
Atrás, jogo frio da Trek (o austríaco da AG2R tinha 1’07’’ de atraso), e a Quickstep impunha um ritmo.
Uma série de ataques (sem sucesso) depois, patrocinados por Bardet, Bilbao e Kelderman, o grupo continuava sem conseguir tirar muito tempo ao líder solitário, enquanto, Remco, como disse no final da etapa, utilizou a tática de João Almeida, também conhecida como ‘Almeidada’, o que lhe valeu o 2º posto na etapa, com Skjelmose em 3º. Tendo, o dinamarquês, recusado trabalhar, Ayuso, também à semelhança do estilo do português, foi melhorando ao longo da subida e chegou com, apenas, 49’’ de atraso deste grupo de favoritos.
5ª Etapa
A jornada seguinte foi o dia fatídico para Mader. Estava Rui Costa, entre outros, na fuga, em grande forma, e parecia que podia ir para a vitória de etapa, ainda mais quando se isolou com Powless e Tiberi. Mas, a falta de contributo do italiano deitou tudo a perder (já não tem muitos fãs, é melhor não tentar perder amigos no pelotão também, embora seja engraçado ver a ironia do Rui pedir a alguém para trabalhar).
A 14km do fim, Ayuso arrancou, em 2km encostou na frente, pouco depois deixou-os para trás e nunca mais foi visto. Teve uma descida espetacular, e perigosa, e venceu a etapa com uma margem confortável (nesta descida, deu-se a queda fatal de Gino Mader, minutos mais tarde). Atrás, vários grupos pequenos com alguma distância, que viria a ser mitigada ou anulada na descida. Remco vinha em perda e viu o rival espanhol a ganhar-lhe 1’20’’, enquanto, os outros, conseguiram 26’’.
6ª Etapa
A sexta etapa foi anulada, devido ao falecimento de Gino Mader, onde se percorreram os últimos 30km, em modo procissão, para homenagear o jovem suíço. Se tivermos de mencionar algum aspeto positivo do dia mais negro do ciclismo nos últimos anos, diríamos que foi o companheirismo, respeito e compaixão demonstrados pelas equipas, corredores e adeptos.
7ª Etapa
A etapa seguinte não foi muito diferente. Fez-se o percurso normal, até aos 25km finais, onde começou a corrida ‘a sério’.
Por uma questão de respeito, e segurança, a organização da corrida, com o aval da família de Gino, determinou que os tempos eram tirados quando faltassem 25km para o fim e, quem quisesse, poderia tentar disputar a etapa, e, os cortes, a partir desse momento, deixavam de ser relevantes para a disputa da geral.
Até esse ponto, o pelotão andou compacto, sem ataques.
Remco Evenepoel venceu a etapa e dedicou-a a Gino, apontando para o céu, ‘dando-lhe’ o arco-íris da sua camisola de campeão do mundo. Uma homenagem sentida, de um ‘miúdo’ muito mais consciente, sensível, maduro e humano do que lhe dão crédito. É fácil esquecer que, apesar da idade, viu partir Mader, Bjorg e Stef Loos (antigo colega de equipa), além de ter assistido, de perto, ao acidente que poderia ter tirado a vida a Fabio Jakobsen.
Num dia em que ganhar a etapa ou ser último não contava para absolutamente nada, e com um ITT decisivo no dia seguinte, é de louvar a atitude de Remco em desgastar-se para prestar homenagem a um colega. Além disto, foi ter com a mãe de Mader, endereçando-lhe os pêsames pessoalmente e confortou vários ciclistas, como Price-Pejtersen.
Para nós, é isto que um campeão deve representar. Dar o exemplo e ser o líder do pelotão. Não é fácil mostrar tanta maturidade quando se é uma superestrela de 23 anos.
8ª Etapa
O último dia era decisivo para as ambições da geral, com Gall a ser o único do top5 com claras debilidades no ITT, o que se provou, descendo de 2º a 8º.
De resto, o trabalho de Evenepoel era árduo, recuperar 46’’ a um bom contrarrelogista era quase impossível, mas, no primeiro ponto intermédio parecia bem encaminhado. No entanto, além de Skjelmose, o belga tinha de se preocupar com Ayuso, também ele forte nesta vertente e com 28’’ de vantagem.
No final, vitória impressionante do espanhol, dilatando a sua vantagem em 8’’ sobre o campeão belga de ITT, mas insuficiente para desalojar o dinamarquês da liderança da CG, tendo em conta que fez uma segunda parte do percurso a um nível extraordinário, perdendo, na meta, apenas 9’’ (mais 1’’ que Remco). Estes três estiveram muito acima do resto, mesmo o campeão da Europa, Bissegger, e Van Aert estiveram longe dos tempos destes três miúdos.
Uma nota, Romain Grégoire, um dos maiores talentos franceses, com excelentes capacidades em terrenos acidentados e bons argumentos em sprints de grupos reduzidos e na montanha, mostra que pode ter mais uma arma no seu arsenal: o ITT. Não são resultados extraordinários, mas, perante as indicações previamente dadas, é um pormenor interessante e a ter em conta para corridas futuras.
Por isso, a CG fica arrumada com Mattias Skjelmose em 1º, com vantagem de 0.09’’ sobre Juan Ayuso (duas vitórias de etapa) e 0.45’’ sobre Remco Evenepoel.
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